Data

Date:
30-03-2017
Country:
Brazil
Number:
70072090608
Court:
Court of Appeal, State of Rio Grande do Sul
Parties:
Voges Metalurgia Ltda. v. Inversiones Metalmecanicas I.C.A. – IMETAL I.C.A

Keywords

CISG APPLICABLE IN ACCORDANCE WITH THE 'PRINCIPLE OF PROXIMITY' OR 'THE MOST SIGNIFICANT RELATIONSHIP RULE'

CISG GAP-FILLING - MATTER OF VALIDITY - RECOURSE TO UNIDROIT PRINCIPLES

CLAIM FOR RESTITUTION OF PURCHASE PRICE PAID TWICE – REASONABLE UNDER THE CIRCUMSTANCES IN ACCORDANCE WITH ART. 3.3.2 UNIDROIT PRINCIPLES

Abstract

A Venezuelan buyer bought 16 engines from a Brazilian company for US $ 73,996.44. Since the Venezuelan import-export and exchange regulations only permitted the purchase by the buyer of the required amount of US dollars once the goods had already been delivered at a port in Venezuela, the buyer anticipated the price to the seller through a U.S. bank in order to make the sale possible. Once the goods arrived at the Venezuelan port of delivery, the buyer had to comply with the Venezuelan import-export exchange regulations and paid a second time the purchase price to the seller. However, the seller refused to restitute the payment made in excess by the buyer, despite having previously promised to do so.

The buyer brought an action before the Brazilian Courts requesting from the seller the restitution of the first payment. The seller objected that the buyer had not proven the double payment made and argued that it had only received one payment made in accordance with the Venezuelan exchange regulations. Alternatively, the seller argued that any restitution in favor of the buyer would be against the law, because the first payment was made in violation of the Venezuelan import-export and exchange regulations and therefore illegal. Moreover, the seller asked the Court to declare the sales contract as a whole null and void and to reject the buyer’s claims.

The first instance Court ordered the seller to restitute to the buyer the payment made in excess, plus interests and costs.

On appeal, as a preliminary matter, the Court of Appeal determined the law applicable to the merits of the dispute. First of all the Court asked the parties to clarify the place of conclusion of the contract so that it could properly identify the law applicable to the dispute. The buyer asserted that the sales agreement had been concluded in Venezuela, while the seller, on the contrary, asserted that it had been concluded in Brazil.

The Court found that the parties’ submissions concerning the place of the conclusion of the contract were inconclusive so that the locus actus could not be used as connecting factor. The Court therefore decided to apply the “principle of proximity” or “the most significant relationship rule” and, following a recent precedent of the same Court [see UNILEX, Court of Appeal State of Rio Grande do of Sul of 14 February 2017], found that the laws applicable to the substance of the dispute were the 1980 Vienna Sales Convention (“CISG”) and the UNIDROIT Principles. And since the validity of the sales contract is not a matter governed by the CISG, the Court decided that in accordance with the criteria for the interpretation of the Convention set forth in Art. 7(1) CISG it would base its decision of the issues at stake on the UNIDROIT Principles, in particular on the provisions set forth in Chapter 3, Section 3 on illegality.

As to the alleged invalidity of the sales contract or at least of the first payment of the purchase price made in violation of the Venezuelan import-export and exchange regulations, the Court of Appeal found that such argument had no merit under Chapter 3 of the UNIDROIT Principles. Citing the official commentary on Articles 3.3.1 and 3.3.2 of the UNIDROIT Principles the Court noted that the domestic mandatory rules referred to in these provisions are those which bear a status of public policy provisions, and the seller had not proved that the violated Venezuelan exchange regulations were mandatory rules of this kind. Yet even if the violation of the Venezuelan exchange regulations fell within the scope of Article 3.3.1, restitution of the first payment would be justified under Article 3.3.2. Indeed, considering the purpose of the mandatory rules in question and the seriousness of the alleged violation the Court concluded that restitution would be reasonable under the circumstances.

Fulltext

(…)

2 Questão prejudicial
A controvérsia relativa ao local e ao modo de firmatura do contrato de que cuidam os autos revela-se fundamental ao mais correto deslinde do mérito, porque o ordenamento jurídico aplicável à questão de fundo pode variar, a depender da sua celebração entre presentes ou entre ausentes – ou, ainda, no último caso, a depender de qual das partes haja figurado como proponente. Afinal, é sabido que a LINDB, ao estabelecer o rol de elementos de conexão do Direito Internacional Privado brasileiro, consagra a regra “locus regit actum” ou “ius loci celebrationis”, i.e. lei do local da celebração, para as obrigações de caráter contratual, como se depreende do seu art. 9o. Precisamente em função disso, a divergência das partes a esse respeito pode qualificar-se, à luz do Direito Processual Civil, como questão prejudicial, visto que essa, diferentemente da questão preliminar, não impede o exame do mérito, tratando, isto sim, de condicioná-lo, ou seja, determinando como ele será julgado.
Assim sendo, analiso o tópico em apreço nesta seção, de forma apartada das preliminares, e desde logo pontuo que a conversão à que procedi do feito em diligência, com o escopo de identificar o Direito aplicável à resolução do mérito, está em plena conformidade com a legislação pátria. Por um lado, porque assim se propiciou às partes o exercício do contraditório sobre a questão prejudicial em tela, ao gosto do art. 10 do CPC/2015, nos termos do qual “o juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício”. Por outro, porque a doutrina do Direito Internacional Privado brasileiro apresenta-se majoritária, senão unânime, no sentido de que o Juiz deve perquirir quanto à aplicação do Direito estrangeiro, e eventualmente aplicá-lo, mesmo “ex officio”, ou seja, independentemente de arguição das partes, sob pena, em última análise, de incorrer em negativa de vigência às normas da Lei de Introdução que estipulam os elementos de estraneidade ou de conexão dos quais deve valer-se o Juiz nacional.
Pois bem. A empresa demandada referiu que a avença foi firmada na Venezuela, devendo “ser aplicadas as normas daquele país para fins de deslinde das controvérsias narradas neste caso” (fl. 265), ao passo que a autora sustentou ter sido o Brasil o local de celebração do contrato, sem nada mencionar quanto ao Direito aplicável (fls.270/271). Assim, é certo que e a resposta de ambas as partes à ordem da fl. 260 não esclarece a esta Corte se o deslinde do mérito do presente litígio deve dar-se com base no Direito brasileiro, por força do “caput” do art. 9o da LINDB, ou, ao invés disso, com base no Direito venezuelano, por força do §2o do mesmo art. 9o da Lei de Introdução. Ou, dito de outro modo, tendo em vista o teor das manifestações da autora e da ré, bem como a ausência de quaisquer documentos relativos a elas, a conversão do feito em diligência não logrou êxito em modificar o caráter inconclusivo do conjunto probatório trazido aos autos anteriormente à sentença, quanto ao elemento de conexão e o Direito aplicável: afinal de contas, as faturas, comprovantes de transferência de valores e cópias de e-mails trazidos conjuntamente à petição inicial (fls. 21/36) nada provam a esse respeito, assim como não o fazem os documentos juntados nas fls. 196/202 ou nas fls. 210/214. Toda a prova documental trazida ao feito diz respeito apenas ao pagamento dos valores relativos ao contrato, não contendo qualquer informação quanto ao modo ou local da sua celebração.
Tecnicamente, portanto, não há respaldo para que se acolha o pleito da ré de aplicação do Direito venezuelano, visto que não foi comprovada, nos autos, a circunstância de celebração do contrato no território daquele Estado, seja entre presentes (art. 9o, “caput”, LINDB), seja entre ausentes, com a autora como proponente (art. 9o, §2o, LINDB). Ao mesmo tempo, contudo, não se pode afirmar, a partir do cotejo dos autos, que o contrato tenha sido celebrado no Brasil. Em síntese, são incertos o modo e o local de firmatura do contrato de que versa o litígio, o que guarda relação direta com a identificação do marco jurídico a incidir no deslinde do mérito. Este, portanto, se trata de caso concreto em que a identificação do Direito aplicável reclama o recurso ao princípio da proximidade (“most significant relationship rule”), sobre o qual se manifesta Jacob Dolinger:
‘mais relevante princípio do moderno direito internacional privado é o da proximidade, que estabelece que as relações jurídicas devem ser regidas pela lei do país com a qual haja a mais íntima, próxima, direta conexão. Esse critério, muito mais flexível do que as regras de conexão, decorre do progressivo abandono de abordagens de natureza técnica e maior atenção às realidades sociais e econômicas que embasam o fenômeno jurídico.
A lei mais próxima é a que se situa mais próxima das partes e/ou da relação jurídica – é a lei mais talhada, mais adequada, mais apropriada para a causa em questão, portanto, a mais pertinente. A proximidade está no sentido da adequação.’
[...]
Lembram autores que, quando Savigny falava na busca da sede da relação jurídica, estaria lançando a idéia de proximidade.

Este Colegiado já recorreu ao princípio da proximidade, por exemplo, na Apelação Cível n.o 70070973771, em 27/10/2016. Naquele precedente, o princípio atuou no sentido de afastar a incidência do California Civil Code e, com isso, ensejar a aplicação do Direito brasileiro – i.e. do Código Civil e do Código de Defesa do Consumidor – para resolver o mérito do litígio, relativo ao descumprimento de contrato de transporte de mudança que, a despeito da sua celebração no estado norte-americano da Califórnia, havia sido executado no Brasil, local da maior irradiação de efeitos jurídicos da avença, sobretudo porque aqui os consumidores da ação haviam experimentado os distintos desdobramentos das falhas na prestação dos serviços contratados.
Ademais, no recente julgamento da Apelação Cível n.o 70072362940, em 14/02/2017, de que também fui Relator, o princípio da proximidade foi utilizado a fim de afastar a lei dinamarquesa (que em princípio incidiria por força do art. 9o, §2o, da LINDB) para, assim, determinar como marco jurídico aplicável ao mérito os Princípios Unidroit Relativos aos Contratos Comerciais Internacionais e a Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias (a “Convenção de Viena de 1980”). A íntegra do voto de Relator por mim proferido evidencia que, naquele julgamento – tendo em vista que o litígio izia respeito a contrato internacional de compra e venda de bens simultaneamente conectado à Dinamarca, ao Brasil e à China –, identificou- se como marco jurídico aplicável o teor da Convenção de Viena de 1980 e dos Princípios Unidroit por considerá-lo mais talhado, mais adequado, mais apropriado ao enfrentamento das controvérsias decorrentes das relações entabuladas na seara do comércio internacional. E esse juízo amparou-se, por um lado, no reconhecimento da Convenção e dos Princípios como exemplos dos usos e costumes vigentes no comércio internacional, e, por outro, no fato de que a sua pertinência ganha especial relevo, no contexto brasileiro, ante o caráter insuficiente e obsoleto do regime de elementos de conexão ditado pelo art. 9o da LINDB. A esse respeito, reporto-me, novamente, à obra da eminente doutrinadora Maristela Basso:
‘[...] as regras de conexão para determinação da lei aplicável aos contratos conforme exemplificadas pelo conteúdo normativo do art. 9o da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (aqui uma referência ao método conflitual clássico) não estão ajustadas à dinâmica e práticas de negociações que foram surgindo no domínio do comércio internacional, especialmente no período do Pós-Guerra no curso das relações econômicas interestatais. Por isso é que a adoção de regras da nova ‘lex mercatoria’ aparece, em sua pretensão de validade doutrinária e jurisprudencial, como uma tentativa de superação dos principais problemas que apresentava a aplicação das regras de conexão clássicas do direito internacional privado para os contratos celebrados entre os principais atores do comércio internacional’.
Em suma, estou rejeitando a arguição prejudicial da ré de aplicação do Direito venezuelano, com base no art. 9o da LINDB, e resolvendo a questão prejudicial no sentido de que o mérito da presente ação de cobrança deve reger-se pela normativa da Convenção de Viena de 1980 e dos Princípios Unidroit. Por isso, aqui me reporto, como razões de decidir acerca do tema, ao teor do voto por mim proferido na antes mencionada Apelação Cível n.o 70072362940, julgada em 14/02/2017, cujos fundamentos igualmente integram, pois, a presente decisão.
Ressalvo, todavia, que a tese defensiva atinente à nulidade do contrato não se submete à Convenção de Viena de 1980, já que essa estipula expressamente não disciplinar a “validade do contrato ou de suas cláusulas, bem como a validade dos usos e os efeitos que o contrato pode ter sobre a propriedade das mercadorias vendidas”, na alínea “a” do seu art. 4°. Esse aspecto do mérito será analisado com base tão somente no marco do Capítulo III dos Princípios Unidroit, porque considero que, a fim de suprir as lacunas existentes no regramento da Convenção de Viena de 1980, o Juiz que a aplica deve reportar-se, primordial e preferencialmente, não ao Direito interno, mas sim às demais normas da “nova lex mercatoria” e de direito uniforme pertinentes aos litígios emergentes do comércio internacional. Afinal de contas, do caráter internacional da Convenção, consagrado no seu art. 7(1), decorre que as soluções jurídicas construídas a partir da Convenção “devem ser aceitáveis em sistemas jurídicos diferentes e com diferentes tradições jurídicas e culturas, os quais podem interpretar matérias na área da compra e venda diferentemente e tratá-las diferentemente”12, do que extraio a maior aptidão do Direito uniforme, que tem precedência sobre o Direito interno, para suprir as lacunas externas da Convenção.
3 Mérito
Com o intuito de obter a improcedência do pedido condenatório, a empresa brasileira ré sustentou a nulidade do contrato firmado entre as partes alegando, para tanto, que a avença foi pactuada à margem e em burla da regulações vigentes, na República Bolivariana da Venezuela, em matéria de operações de câmbio e importação. Foi nesse sentido a manifestação da ré em contestação (fls. 51/67) e na apelação dirigida a esta Corte (fls. 224/236), em síntese, no sentido de que, considerada a obrigatoriedade de emissão de dólares norte-americanos, para pagamento da importação, somente quando da chegada da carga na aduana venezuelana, não poderia a compradora (empresa com sede e atuação naquele país, bem como conhecedora, presumivelmente, da legislação a que submetida) ter efetuado adiantamento do valor da carga, para posterior reembolso, assim não fazendo jus – aduziu – à restituição pretendida. No marco do Capítulo III dos Princípios Unidroit Relativos aos Contratos Comerciais Internacionais, todavia, não há possibilidade de acolhimento da tese defensiva de nulidade do contrato.
Transcrevo, por oportuno, o regramento dado pela Seção 3 do Capítulo III dos Princípios Unidroit, aplicável ao presente caso:
Artigo 3.3.1 (Contratos que infringem normas imperativas)
(1) Quando o contrato infringir uma norma imperativa, de origem nacional, internacional ou supranacional, aplicável conforme o Artigo 1.4 destes Princípios, os efeitos dessa violação sobre o contrato, quando existentes, serão os efeitos expressamente prescritos pela norma imperativa em questão.
(2) Quando a norma imperativa não prescrever expressamente os efeitos de sua violação sobre o contrato, as partes poderão valer-se das medidas jurídicas nele previstas, desde que razoáveis segundo as circunstâncias.
(3) Para determinar o que é razoável há que se considerar, em particular: (a) a finalidade da norma que foi violada; (b) a categoria de pessoas para cuja proteção a norma existe; (c) qualquer sanção que possa ser imposta conforme a norma violada; (d) a gravidade da violação; (e) se uma ou ambas as partes conheciam ou deveriam ter conhecimento da violação; (f) se o cumprimento do contrato implica a violação da norma; e (g) as expectativas razoáveis das partes.
Artigo 3.3.2 (Restituição)
(1) Quando tiver ocorrido o adimplemento de um contrato em violação a uma norma imperativa, nos termos do Artigo 3.3.1, a restituição poderá ser concedida sempre que razoável segundo as circunstâncias.
(2) Para determinar o que é razoável, deve-se atentar, com as devidas adaptações, para os critérios referidos no Artigo 3.3.1 (3).
(3) Se a restituição for concedida, aplicar-se-ão as regras previstas no Artigo 3.2.15, com as devidas adaptações.
Observo, ademais, que os comentários oficiais aos Princípios Unidroit – disponíveis para consulta, via download, junto ao seu website – não definem, propriamente, o conceito de normas imperativas de caráter nacional, limitando-se, ao invés disso, a referir que são aquelas editadas pelos Estados de forma autônoma e soberana, no que tange, por exemplo, a pressupostos de forma específicos para determinados tipos de contrato, à nulidade de cláusulas penais, a requisitos de licenciamento e operação, a regulações em matéria ambiental etc.14 À luz dos Comentários aos Princípios Unidroit, portanto, é possível afirmar que deles se colhe a noção de que a norma de origem nacional apta a qualificar-se como imperativa é aquela relacionada, por sua própria natureza, à noção de ordem pública: em outros termos, é necessário que a norma nacional tida por violada, na pactuação ou na execução do contrato “sub judice”, revista-se de robustez e materialidade significativas, por seus próprios termos, ou, dito de outro modo, que se qualifique como cogente, não como meramente supletiva, para, assim, tornar sem efeitos jurídicos a vontade das partes representada pelo contrato. Prova disso é que, ao enumerar, em caráter exemplificativo, as normas imperativas internacionais, os comentários aos Princípios citam tratados multilaterais tais como a Convenção do Unidroit sobre Bens Culturais Roubados ou Ilicitamente Exportados e a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, bem como instrumentos normativos de “soft law” da envergadura da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Dito isso, pondero que, no caso concreto, não aportou aos autos qualquer indício no sentido de que a regulação venezuelana de compra de dólares para fins de importação – que a ré alegou ter sido descumprida, na performance do contrato – se possa qualificar como de caráter imperativo, para, assim, ensejar a anulação da avença. Na verdade, não há prova a esse respeito tanto quanto não consta, dos autos, qualquer esforço argumentativo nesse sentido, já que a arguição de nulidade contratual deu-se de maneira vaga e imprecisa, para não dizer genérica e abstrata. Portanto, tenho que competia à ré o ônus probatório a esse respeito, na qualidade de devedora e, portanto, de interessada no reconhecimento da nulidade do contrato. De modo que, não tendo se desincumbido do encargo em questão, o caso em apreço não dá azo à pretendida declaração de nulidade do contrato, mesmo porque o caráter imperativo da regulação venezuelana em matéria de câmbio e importação não pode ser declarado, por esta Corte, sem que a parte interessada aporte quaisquer elementos nesse sentido.
Por outro lado, mesmo que aqui se pudesse qualificar como imperativa a legislação venezuelana interna à margem da qual as partes estipularam o modo de pagamento do valor contratado, remanesceria o direito da compradora à restituição pretendida. Nesse ponto, destaco que, nos termos do já citado art. 3.3.2 dos Princípios Unidroit, “quando tiver ocorrido o adimplemento de um contrato em violação a uma norma imperativa, nos termos do Artigo 3.3.1, a restituição poderá ser concedida sempre que razoável segundo as circunstâncias”. Com efeito, considerando o rol do art. 3.3.1 (3) dos Princípios, particularmente a finalidade da norma violada (a qual não possui qualquer outro escopo que não assegurar a intervenção estatal, via intermediação, nas operações de importação e exportação) e a gravidade da violação (absolutamente inexpressiva, considerando que o ajuste das partes constituiu mero adiantamento do pagamento que, pela legislação interna venezuelana, somente poderia ocorrer quando da entrega da mercadoria na aduana), o caso em exame comporta juízo positivo sobre a razoabilidade das circunstâncias, a permitir a restituição pleiteada pela empresa estrangeira autora, ainda que se admita, “ad argumentandum tantum”, que a norma venezuelana violada se qualifique como de cunho imperativo.
Se o regramento específico em matéria de ilegalidade contratual dado pelo Capítulo III dos Princípios Unidroit não respalda a tese da ré, tampouco o fazem, em última análise, as cláusulas gerais dadas pela Convenção de Viena de 1980.
Ainda que a CISG não discipline o tema da nulidade contratual, como dito, à maneira dos Princípios Unidroit, é certo que estipula o dever de boa-fé como cânone estruturante fundamental do regramento do fluxo transfronteiriço de mercadorias, fazendo-o conjuntamente às referências ao seu caráter internacional e à necessidade de promover a sua aplicação uniforme, na forma do seu art. 7(1). Sobre a conjunção do dever de boa-fé no comércio internacional com os demais preceitos ora apontados, reporto- me à elucidativa lição de Paulo Nalin e Renata Steiner:
As duas expressões referenciadas à interpretação da Convenção no texto do art. 7 (1) CISG, são caráter internacional e aplicação uniforme, devendo a elas ser atribuído um conteúdo imperativo, sendo este o sentido que se extrai do comando “[...] ter-se-ão em conta [...]”.
Este é um dispositivo fundamental da CISG, cujo respeito deve ser rigoroso, uma vez que leva tanto em consideração a sua natureza pública e internacional como a sua própria razão de ser, que vem a ser a promoção da boa prática do comércio internacional, fundada no conhecimento de regras jurídicas comuns aos Estados contratantes – um dos principais objetivos da CISG e da UNCITRAL.
Portanto, também por esse prisma há óbice ao acolhimento da tese defensiva de nulidade contratual. Como consignei no voto de Relator proferido na já mencionada Apelação Cível n.o 70072362940, julgada em 14/02/2017, “a Convenção de Viena de 1980 constitui expressão da praxe mais difundida no comércio internacional de mercadorias”, podendo ser qualificada como costume, tanto à luz do Direito Internacional Público, quanto à luz do Direito Civil brasileiro, razão pela qual está ao alcance dos Juízes nacionais, na forma do art. 113 do Código Civil de 2002. Ora, se a Convenção de Viena de 1980 define-se como expressão máxima da praxe do comércio internacional e, dito isso, se tal praxe tem por cânone maior a necessidade de respeito à boa-fé, então é certo que não assiste razão à ré, sob a Convenção, ao sustentar a nulidade do contrato. A arguição de nulidade da avença firmada entre as partes está em absoluta desconformidade com o dever máximo de boa-fé nas relações negociais no comércio internacional, que o art. 7 (1) CISG espelha. Afinal de contas, é razoável supor que a empresa venezuelana autora somente procedeu ao pagamento adiantado do valor das mercadorias adquiridas porque, se não o tivesse feito, a empresa brasileira ré muito provavelmente não as teria embarcado, receosa de somente receber o valor contratado quando da chegada das mercadorias na aduana, em território venezuelano. É costume, afinal de contas, que o pagamento do objeto da compra e venda preceda a sua entrega, não o contrário. Por isso, parece auto-evidente, a meu sentir, que a alegação de nulidade contratual caracteriza afronta ao dever de boa-fé: a ré pretende, em última análise, escusar-se do dever de restituir o valor recebido em duplicidade, com base em arguição por meio da qual impugna a sistemática entabulada entre as partes contratantes, precisamente, com o propósito de tornar mais seguro o negócio levado a efeito, o que veio a ocorrer, em seu favor, não em seu prejuízo, tanto que findou por receber em dobro o montante de fato devido.
Acerca do sentido e extensão da boa-fé objetiva, reporto-me à lição de Ruy Rosado de Aguiar Júnior, no sentido de que essa:
‘[...] exige de todos os que participação de relação intersubjetiva uma conduta leal e solidária. No contrato, deve ser obedecia na negociação prévia, na contratação, na execução e mesmo após o seu cumprimento. É fonte de deveres e de obrigações. É o limite para o exercício dos direitos: quer dizer, ainda que exista norma concedendo ou reconhecendo um certo direito, esse somente poderá ser exercido nos limites da boa-fé’

Como consignei quando do julgamento da Apelação Cível n.o 70072362940, em 14/02/2017, antes mencionada, é sabido que, no intuito de criar uma uniformidade de regras para o tratamento destinado às relações comerciais internacionais, a Convenção de Viena de 1980 estruturou a noção de contrato a partir de dois pilares fundamentais, a saber, a autonomia privada e a boa-fé objetiva17, da qual se pode extrair, entre outros, o dever das partes de atuar com lealdade negocial, a impor aos contratantes a compreensão de que o contrato de compra e venda internacional de mercadorias há de ser entendido como uma relação de cooperação entre os que dela participam18. E, se o regramento da Convenção de 1980 espelha, na sua essência, o dever de boa-fé subjacente às relações entabuladas na esfera do comércio internacional, não há dúvida de que a tese da ré deva ser rejeitada, porque de todo incompatível com o cânone em tela, quando se trata de contrato qualificado como internacional.
Ora, dando-se guarida a tese defensiva ora em exame, findar- se-ia por ensejar enriquecimento sem causa em benefício da vendedora / ré, resultado jurídico inaceitável não apenas desde a perspectiva do Direito do Comércio Internacional, “ex vi” das regras dos Princípios Unidroit e da Convenção de Viena de 1980 acima analisadas. O deslinde pretendido pela demandada contrariaria, em suma, a máxima de que a efetivação do Direito consiste em dar a cada um o que lhe é devido.
Assim, tendo a vendedora / ré recebido em duplicidade o valor a que efetivamente fazia jus, deve proceder à restituição pleiteada na exordial. Isso porque, contrariamente ao também alegado pela requerida, o conjunto dos autos contém, sim, prova do pagamento em dobro: para tanto, basta o cotejo do ofício expedido pela Sra. Gerente da Agência do Banco do Brasil do Município de Caxias do Sul, juntado na fl. 196, conjuntamente aos comprovantes de transferência internacional de valores acostados nas fls.197/202. E a tais documentos, convém ressaltar, agrega-se o teor da tratativa via e-mail entre as partes, cuja cópia veio nas fls. 89/90, em que a vendedora / ré mencionou expressamente que procederia à restituição do valor recebido, em dobro, de forma antecipada.
Mantido o juízo de procedência integral do pedido, tampouco há espaço, por fim, para o acolhimento do pedido sucessivo da ré de minoração dos honorários de sucumbência arbitrados na sentença. A Magistrada de primeira instância arbitrou a verba honorária em 10% sobre o valor atualizado da condenação, percentual que consiste no mínimo previsto na norma do art. 85, §2o, do Novo CPC, razão pela qual descabe a pretendida minoração. Mesmo porque, convém ressaltar, o valor atualizado da condenação não se mostra exorbitante, hipótese em que se poderia, porventura, em recurso à equidade, abrandar a regra geral estipulada pelo precitado art. 85 da legislação processual e, com isso, fixar os honorários em apreciação equitativa.

Dispositivo
ISSO POSTO, voto no sentido de: (i.) rejeitar as preliminares de não conhecimento da apelação cível e de ausência de jurisdição brasileira para o processo e julgamento do litígio, (ii.) rejeitar a questão prejudicial, suscitada pela ré, Voges Metalurgia S.A., de aplicação do ordenamento jurídico venezuelano ao deslinde do mérito, e (iii.) quanto à questão de fundo, propriamente dita, negar provimento ao apelo, assim ratificando, na íntegra, a sentença de procedência do pedido formulado pela empresa estrangeira autora, Inversiones Metalmecánicas I.C.A., relativamente à restituição, pela ré, do valor de R$150.908,33, com acréscimo de juros de mora, de 1% ao mês, desde a citação, e, não menos, de correção monetária, segundo o IGP-M, desde 23/01/2013, e relativamente aos honorários de sucumbência, na razão de 10% sobre o valor atualizado da condenação, nos termos supra.}}

Source

Published in original:
- available at the University of Carlos III website, http://www.cisgspanish.com

Commented on by:
- L. G. Meira Moser, CISG in Brazilian Courts: A Promising Start, in Internationales Handelsrecht (IHR), n. 4/2016, 133 ff.}}