Data

Date:
14-02-2017
Country:
Brazil
Number:
70072362940
Court:
Court of Appeal, State of Rio Grande do Sul
Parties:
Noridane Foods S.A. v. Anexo Comercial Importação e Distribuição Ltda

Keywords

APPLICATION OF CISG AND THE UNIDROIT PRINCIPLES AS AN EXPRESSION OF THE 'NEW LEX MERCATORIA'

CONTRACT CONCLUSION - NO PARTICULAR FORM REQUIRED (ARTS. 11 CISG AND 1.2 UNIDROIT PRINCIPLES)

NON DELIVERY BY SELLER - BUYER ENTITLED TO TERMINATE THE CONTRACT (ART. 49 CISG)

GOOD FAITH - GENERAL CANON ESTABLISHED BY NEW LEX MERCATORIA AND REFLECTED IN ARTS. 7(1) CISG AND 1.7 UNIDROIT PRINCIPLES

Abstract

A Danish buyer and a Brazilian seller entered into a contract for the sale of a certain amount of frozen chicken to be delivered in Hong Kong. The buyer made the down payment, but the seller failed to deliver the goods at the agreed time. The buyer then fixed an additional period of time requesting the seller to deliver the goods within that period of time, but since the seller did not deliver even within the additional period of time, the buyer terminated the contract and claimed damages.

The Court of first instance decided in favor of the buyer. The Court of Appeal of Rio Grande do Sul confirmed the decision.

As to the law governing the contract, the Court of Appeal noted that, according to Art. 9(2) of the Law of Introduction to the Rules of Brazilian Law, Danish law as the law of the place of the conclusion of the contract would be applicable. However, the Court held that, whenever as in the case at hand the contract is pluri-connected, the traditional lex loci celebrationis rule should be disregarded in favor of a more flexible approach leading to the application of the CISG and the UNIDROIT Principles as an expression of the so-called “new lex mercatoria”.

Admittedly the CISG was ratified by Brazil only after the conclusion of the contract and was therefore not applicable by virtue of Art. 1(1)(a), but in the Court’s opinion the Convention, also in view of the great number of countries that have already ratified it and its regular observance by businesspeople worldwide, may be considered the expression of the most widespread “practice” in the international trade of goods and, as such, become relevant according to Article 113 of the Brazilian Civil Code which provides that the interpretation of legal transactions must be in accordance with usages and customs.

As to the UNIDROIT Principles, the Court found that their content coincided to a large extent with new lex mercatoria, i.e. the principles and rules, model contracts and clauses, usages and customs, which have been developed independently from the States by international trade practice and may therefore be considered ‘an authentic transnational commercial law’. Moreover, citing authoritative scholarly writings, the Court observed that CISG and the UNIDROIT Principles, far from being antagonistic or mutually exclusive, on the contrary complement each other. Finally, the Court stressed the fact that the use of the UNIDROIT Principles – as well the application of the CISG even if not part of the Brazilian domestic law – reaffirms a flexible, non-positivist approach to disputes as is required in the field of international commercial law.

As to the merits, the Court rejected the seller´s objection that there was no valid contract between the parties since it had not been concluded in writing. According to the Court, there was sufficient other evidence to demonstrate the existence of a contractual relationship, and in support of this it invoked Article 11 CISG and Article 1.2 of the UNIDROIT Principles, both stating the principle of freedom of form with respect to conclusion and evidence of international commercial contracts. Moreover, the Court found that the buyer’s termination of the contract was justified not only on the basis of Article 49 CISG, but also because the seller by its conduct committed a major violation of the general duty to act in good faith in the performance of contracts, which constitutes one of the greatest canons established by the “new lex mercatoria” and can be inferred from Article 1.7 UNIDROIT Principles and Article 7(1) CISG.

Fulltext

(…)

2 Mérito
Do exame da prova constante dos autos, verifica-se sem qualquer espaço para dúvidas a existência de vínculo contratual entre a empresa estrangeira autora, Noridane Foods A/S, e a empresa brasileira ré, Anexo – Comercial Importadora e Distribuidora Ltda. – EPP. Por um lado, porque, ainda que não tenha sido juntado aos autos qualquer contrato escrito, as faturas das fls. 22/23 – emitidas, frise-se, pela própria demandada

– demonstram a toda a evidência que entre as pessoas jurídicas ora litigantes foi celebrado vínculo contratual por meio do qual a ré obrigou-se a proceder à entrega de 135 (cento e trinta e cinco) toneladas de pés de galinha congelados, “grade B”, e de outras 27 (vinte e sete) toneladas de pés de galinha congelados, “grade A”, mediante a contraprestação, pela autora, consubstanciada no pagamento do valor total de US$117.450,00 (cento e dezessete mil, quatrocentos e cinquenta dólares norte-americanos). Por outro, porque tampouco pendem quaisquer dúvidas no sentido de que, ademais disso, as partes também acordaram a realização de pagamento inicial do montante de US$79.650,00 (setenta e nove mil, seiscentos e cinquenta reais), o que foi feito pela autora: assim foi exposto na exordial (fl. 05), demonstrado na documentação a ela anexa (fls. 30/31) e reconhecido em contestação (fl. 56).
Assim sendo, não deve ser acolhida a tese defensiva no sentido de que a ré teria figurado como mera preposta ou mandatária, na acepção do art. 653 do Código Civil, da pessoa jurídica Vilson Gobbato – ME, representada por seu proprietário e pelo despachante aduaneiro respectivo, Sr. Marcos Santana Ribeiro. Há contrato entre os ora litigantes e esse se qualifica, por óbvio, não como de mandato, mas como de compra e venda, nos termos e pelas razões que adiante se verá.
De outra parte, convém pontuar que a avença entre a autora e a ré define-se como contrato internacional, como ressalta Nadia de Araujo, a partir do trecho que ora transcrevo:
O que caracteriza a internacionalidade de um contrato é a presença de um elemento que o ligue a dois ou mais ordenamentos jurídicos. Basta que uma das partes seja domiciliada em um país estrangeiro ou que um contrato seja celebrado em um país, para ser cumprido em outro.
Com efeito, o litígio em apreço demanda a qualificação da avença havida entre as partes como contrato internacional – para todos os efeitos jurídicos daí decorrentes – porque está configurado, no caso concreto, como, aliás, já destaquei quando do julgamento do Agravo de Instrumento n.o 70065345423, de minha Relatoria, o assim chamado efeito internacionalizante de que trata a eminente doutrinadora Maristela Basso, em bibliografia clássica sobre o tema, ao explicar que esse
[...] produz-se como decorrência da conjunção, por um lado, de aspectos jurídicos, relativamente à produção de efeitos jurídicos simultâneos em mais de um ordenamento jurídico, e, por outro, de aspectos econômicos, relativos ao fluxo e refluxo transfronteiriço de bens, valores e capitais.7
Afinal, a autora / compradora tem domicílio na Dinamarca; a ré / vendedora tem domicílio no Brasil; e as obrigações relativas à execução do contrato, no tocante à transferência da propriedade das mercadorias negociadas e a sua entrega, pela vendedora, dividem-se entre Brasil e Hong Kong, China; assim caracterizando o elemento transnacional ínsito ao contrato qualificado como internacional. Ressalto que a conceituação do vínculo contratual havido entre as partes como contrato internacional de
6 ARAUJO, Nadia de. Direito internacional privado: teoria e prática brasileira. – 5. ed. atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Renovar, 2011, p. 384.
7 BASSO, Maristela. Contratos internacionais do comércio: negociação, conclusão, prática. – 2 ed., rev., atual. e ampl. – Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 293.
?
compra e venda de mercadorias aqui não se dá à toa. Justifica-se porque remete ao marco jurídico aplicável ao deslinde do mérito, o qual se compõe, no caso, pela Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias (a assim chamada “Convenção de Viena de 1980”) e, ao mesmo tempo, pelos Princípios Unidroit Relativos aos Contratos Comerciais Internacionais.
No tocante à Convenção de Viena de 1980, tem-se que sua entrada em vigor para o Brasil, no plano internacional, ocorreu na data de 01/04/20148, ao passo que a sua cogência no plano interno somente teve início com o advento do Decreto n.o 8.237, de 16 de outubro de 2014. Afinal, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal orienta-se no sentido de chancelar a praxe brasileira de condicionamento da eficácia interna do tratado à expedição do decreto presidencial que dá publicidade ao texto do ato internacional e o promulga, dele decorrendo a possibilidade de arguição dos termos do tratado, pelos particulares, e da sua aplicação, inclusive de ofício, pelo Poder Judiciário9. Logo, partindo-se de tal premissa, resultaria aqui em princípio inaplicável a Convenção de Viena de 1980, pois o contrato foi celebrado em 01/07/2014 (fl. 22) e o seu descumprimento caracterizou-se nos meses subsequentes, conforme narrado na exordial, i.e., antes da vigência da Convenção no plano interno. De qualquer sorte, não há qualquer impedimento ao uso do tratado como referencial jurídico aplicável ao deslinde do mérito, porque, independentemente do marco inicial da sua
8 Conforme verificado junto ao site da United Nations Comission on International Trade Law, na seção referente às assinaturas e ratificações da Convenção de Viena de 1980
(),
23.01.2017.
9 Nesse sentido: Agravo Regimental na Carta Rogatória n.o 8.279, Relator: Ministro Celso de Mello, Tribunal Pleno, julgado em 17/06/1998, DJ 10-08-2000.
?em eficácia interna em termos estritamente positivistas, a Convenção constitui expressão da praxe mais difundida no comércio internacional de mercadorias, estando por isso ao alcance dos Juízes nacionais, até mesmo em função da norma do art. 113 do Código Civil, que determina a interpretação dos negócios jurídicos de acordo com os usos e costumes.
Sobre a possibilidade de aplicação de tratados e convenções internacionais independentemente da sua eficácia no plano do Direito positivo interno, ante a sua qualidade de manifestação doutrinária e, particularmente, de usos e costumes, reporto-me, novamente, à lição de Maristela Basso:
Uma interessante questão concernente ao campo da elaboração normativa do direito internacional privado reside na relevância e valor normativo que devem ser atribuídos às convenções e tratados não ratificados pelos Estados. Existe, com frequência, uma possível falta de correspondência material entre os trabalhos de negociação e elaboração dos tratados e o momento efetivo da sua adoção e ratificação pelos Estados- partes signatários. Esse problema explica-se, com frequência, pelas dificuldades internas enfrentadas pelas autoridades estatais, em especial pelo Poder Legislativo, na aprovação e ratificação desses atos – sem necessariamente significar que os especialistas em direito internacional privado tenham discordado do texto adotado, nem mesmo que o parlamento (no nosso caso, o Congresso Nacional) discorde de seu texto e da sua aprovação.
A importância dos tratados e convenções está justamente no objetivo de uma determinação comum para o campo de aplicação do direito internacional privado entre Estados na atualização da disciplina orientada pelo consenso da comunidade internacional sobre a importância da regulamentação da vida internacional das pessoas, nos vários setores em que as relações jurídicas se manifestam. Por isso, as ratificações internas são fundamentais. Enquanto o tratado ou convenção permanecer sem aprovação e ratificação internas, podemos usá-los como fonte material ou fonte de inspiração no caso concreto. De acordo com Battifol, trabalhos de qualidade jurídica acabam não entrando em vigor por falta de ratificação dos países signatários. Contudo, há possibilidade de antecipação dos efeitos jurídicos das convenções não ratificadas, pelo juiz nacional, quando ele aplica o texto como forma de “manifestação doutrinária”, prova dos usos e costumes internacionais ou, ainda, como direito estrangeiro.
Ainda sobre o caráter de fonte de Direito do tratado não ratificado, transcrevo excerto de lavra do Embaixador Geraldo Eulálio do Nascimento e Silva, igualmente esclarecedor sobre o tema:
Uma convenção não ratificada ganhará em autoridade como direito internacional na medida em que for aprovada por uma grande maioria e receba ratificações de um número grande e representativo de Estados. A “contrario sensu”, esta convenção perderá força se um longo período de tempo transcorrer e um número muito reduzidos de Estados a ratifica ou a ela adere.
Por tais razões, resta claro que não haveria sentido em proceder ao deslinde do mérito sem o referencial da Convenção de Viena de 1980, constituindo formalismo positivista – incompatível com a prestação jurisdicional mais adequada às relações jurídicas comerciais transnacionais
– condicionar-se a aplicabilidade do tratado estritamente à vigência do Decreto presidencial de promulgação do seu texto. Relembro, aqui, que a Convenção de Viena tem sido qualificada como o “life blood of international commerce”12, já que se trata do mais utilizado instrumento jurídico de regulação da troca internacional de mercadorias: conta com 85 (oitenta e cinco) ratificações13, as quais abrangem os maiores atores comerciais globais (China, EUA, Japão, Europa Ocidental, América Latina, Sudeste Asiático etc.), e, desse modo, rege de forma efetiva e em potencial em torno de 80% do comércio internacional14.
Portanto, o deslinde do mérito do presente apelo com base na Convenção de Viena de 1980 dá-se – convém frisar – com amparo nas premissas de que a normativa da Convenção, pelas razões acima expostas, qualifica-se como regramento costumeiro das relações comerciais internacionais. A propósito, a conceituação da Convenção de Viena de 1980 como costume internacional parece-me possível também à luz do Direito Internacional Público. Reputo atendidos os requisitos apontados pela doutrina internacionalista para que se qualifique uma prática estatal como costume: atento, aqui, para o elevado número de ratificações da Convenção;
para a sua franca utilização pelos tribunais dos Estados que a ratificaram ou a ela aderiram, desde a sua entrada em vigência, ainda na década de 1980; e, não menos, para consistência e regularidade com que tem sido aplicada15. Logo, sendo a Convenção aqui aplicada como costume, não como norma de direito positivo, descabe a arguição de que o seu teor não poderia ser utilizado por esta Corte com base na regra de aplicação temporal do tratado dada pelo seu art. 100. Assim ressalto, desde logo, para evitar o eventual manejo de embargos de declaração, pela requerida, de cunho meramente protelatório.
Já no que diz respeito aos Princípios Unidroit Relativos aos Contratos Comerciais Internacionais, tampouco há óbice a sua aplicação no deslinde do mérito do caso em tela. Em primeiro lugar, porque o conteúdo dos Princípios UNIDROIT revela, em larga medida, o conteúdo da assim chamada “nova lex mercatoria”, isto é, do conjunto de normas reunidas em princípios, usos e costumes, cláusulas-padrões, contratos-tipo, decisões judiciais e arbitrais etc., concebidas ou derivadas do âmbito negocial dos atores do comércio internacional, podendo conceituar-se a “nova lex mercatoria” como um autêntico “direito transnacional do comércio”, de formulação e modificação não necessariamente estatal16. Em segundo lugar, porque o domínio da “nova lex mercatoria” está ao alcance dos Juízes togados, tanto quanto dos árbitros17 – como, inclusive, já tive a ocasião de
consignar, quando do julgamento da Apelação Cível n.o 70065097891, em que conferi cogência e interpretei cláusula de “incoterms” em conformidade com a jurisprudência consolidada sobre o tema no âmbito do órgão arbitral da Câmara de Comércio Internacional18. Em terceiro lugar, porque, como tem destacado a doutrina, a Convenção de Viena de 1980 e os Princípios Unidroit não guardam entre si relação de antagonismo ou auto-exclusão, mas sim de complementaridade19. E, por fim, porque o uso dos Princípios –
18 Transcrevo a ementa do julgado em questão:
??“APELAÇÃO CÍVEL. TRANSPORTE. TRANSPORTE DE COISAS. DIREITO EMPRESARIAL.
?DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO. AÇÃO CONDENATÓRIA POR DANOS MATERIAIS.
?CONTRATO DE TRANSPORTE INTERNACIONAL DE MERCADORIAS. TRANSPORTE DE FLORES
?ENTRE BRASIL E ITÁLIA. CUSTEIO DO FRETE PELO IMPORTADOR.CLÁUSULA "FREE
?CARRIER". INTERNATIONAL COMMERCIAL TERMS ("INCOTERMS"). CÂMARA DE COMÉRCIO
?INTERNACIONAL. "LEX MERCATORIA". GRUPO ECONÔMICO DE FATO. CRITÉRIOS. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. REQUISITOS. 1- É possível a aplicação, pelo Poder Judiciário, de normas integrantes da "nova lex mercatoria", de que são exemplos os incoterms editados sob os auspícios da Câmara Internacional de Comércio. Atribuição de eficácia ao contrato firmado entre as partes, com base em norma da "nova lex mercatoria", que tem lugar independentemente da natureza não-vinculativa das suas regras e da sua origem e criação independentes da autoridade estatal. Cláusula de incoterm que não confronta qualquer dispositivo do Direito brasileiro, ao repartir os custos da remuneração do transporte, entre o importador e o exportador. Ajuste contratual que se dota de efeitos, em Juízo, sob pena de violação aos princípios da liberdade de contratação e da força obrigatória do contrato, entre as partes que o firmam. 2- Muito embora a Cláusula Free Carrier (FCA) atribua ao importador o dever
?de custeio do frete, a partir do local indicado pelas partes - no caso, Porto Alegre -, o pagamento do ?valor pleiteado pela autora, nesta contenda, deve ficar a cargo da exportadora ré, descabendo cogitar de responsabilidade da empresa italiana importadora (alheia aos autos). Circunstâncias do caso concreto que ensejam a desconsideração de personalidade jurídica, ante a constatação da ocorrência
?de grupo econômico de fato entre a empresa brasileira demandada (Agroindustrial Lazzeri S.A.) e a empresa italiana que não está no pólo passivo da demanda (Lazzeri Società Agricola).
?Desconsideração da personalidade jurídica que permite imputar à exportadora ré o ônus que, nos ?termos da cláusula de incoterm FCA, competiria à importadora estrangeira, como se essa fosse. 3-
?Tendo a autora comprovado a realização do serviço de transporte de mercadorias entre Porto Alegre e ?Roma, na forma do art. 333, I, do CPC, impõe-se a procedência do pedido inicial, ante a falha da ré?em se desincumbir do ônus quanto a fato(s) impeditivo(s), extintivo(s) ou modificativo(s) do direito da autora. Juízo de procedência do pedido e desconsideração da personalidade jurídica que tornam prejudicado o exame do pedido sucessivo de citação da empresa estrangeira, para figurar no pólo passivo do feito. Apelação cível provida.” (Apelação Cível No 70065097891, Décima Segunda Câmara
?Cível, TJRS, Rel.: Umberto Guaspari Sudbrack, Julgado em 10/12/2015) (grifos apostos).

assim como da Convenção de Viena de 1980, independentemente da sua eficácia no plano do Direito positivo, no Brasil, ser posterior ao tempo dos fatos ora em apreço – reafirma a abordagem flexível, não positivista da controvérsia, como exigem os litígios decorrentes das relações entabuladas na seara do comércio internacional. Como observa Lauro Gama Júnior20:
os Princípios do UNIDROIT, tanto no plano formal como em substância, constituem um modelo de uniformização jurídica do direito contratual internacional compatível com a maioria dos sistemas jurídicos contemporâneos, notadamente os de tradição civilista (como o brasileiro) e os ligados ao common law, revelando o resultado de esforços fundados no moderno comparativismo.
Sem embargo da presença estatal em alguns de seus segmentos, a realidade do comércio internacional exibe, a todo momento, a natureza transnacional de suas atividades, como o transporte, o sistema bancário, as telecomunicações, o turismo, a compra e venda de mercadorias e serviços etc. Muitas vezes, tais atividades são desenvolvidas por sociedades criadas segundo as leis de vários Estados ou vinculadas a grupos transnacionais cuja personalidade é difícil discernir. Numerosos contratos celebrados nessa arena fazem referência genérica ao direito internacional, aos princípios gerais de direito ou aos princípios comuns a vários ordenamentos estatais, bem como aos usos do comércio internacional.
É nesse espaço transnacional que florescem instrumentos como os Princípios do UNIDROIT, surgidos independentemente de qualquer vontade estatal e cuja existência como direito é demonstrada pela evolução do pensamento jurídico para além do positivismo. Porém, é fato que as relações jurídicas do comércio internacional não existem em espaços
20 GAMA Jr, Lauro. Os princípios do Unidroit relativos aos contratos do comércio internacional: uma nova dimensão harmonizadora dos contratos internacionais. XXXIII Curso de Derecho Internacional. Washington, D.C.: OEA, Secretaría General, 2007, p. 95/142.
?
ideais, mas sim na realidade cotidiana dos espaços territoriais sujeitos ao império de um direito nacional, com os quais têm de dialogar. Esse é o grande desafio para a utilização efetiva dos Princípios do UNIDROIT relativos aos Contratos do Comércio Internacional 2004, principalmente para os juízes e tribunais brasileiros.
Ainda no que diz respeito ao marco jurídico aplicável, impõe-se uma ulterior observação. Caso aqui se procedesse à aplicação dos clássicos elementos de conexão dados pela Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, a circunstância de o contrato ter sido firmado entre ausentes, aliada ao fato de a empresa estrangeira autora ter figurado como proponente da avença (tal como se depreende dos e-mails cuja cópia foi juntada nas fls. 25/27, assim como do teor da petição inicial e do recurso), conduziria, em princípio, ao deslinde da questão de fundo com base no Direito dinamarquês, por força da regra “lex loci celebrationis” dada pelo art. 9o, §2o, da LINDB.
Todavia, considerando que a proponente / compradora tem domicílio na Dinamarca; que a vendedora tem domicílio no Brasil; e que a execução da obrigação, pela parte vendedora, deveria dar-se entre Brasil e Hong Kong, China; o que se tem é que, no caso concreto, o uso do princípio da proximidade não apenas permite como recomenda que se afaste o Direito estrangeiro indicado pela regra de conexão do art. 9o, §2o, da LINDB. A despeito do local e modo de celebração do contrato, não se pode afirmar, ante a forma difusa de irradiação de efeitos – jurídicos e econômicos – da relação em tela, que essa tenha como local de sede ou centro de gravidade a Dinamarca. Assim, a conclusão a que se chega é que também o princípio da proximidade – ensejando abordagem flexível e atenta “às realidades sociais e econômicas que embasam o fenômeno jurídico”21 22 – redunda na aplicação da Convenção de Viena de 1980 e dos Princípios Unidroit para o enfrentamento do mérito, cabendo aqui ressaltar que a doutrina autoriza o uso da “nova lex mercatoria” como Direito aplicável às obrigações contratuais multiconectadas, mormente à luz do caráter obsoleto dos elementos de conexão dados pela LINDB:
[...] as regras de conexão para determinação da lei aplicável aos contratos conforme exemplificadas pelo conteúdo normativo do art. 9o da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (aqui uma referência ao método conflitual clássico) não estão ajustadas à dinâmica e práticas de negociações que foram surgindo no domínio do comércio internacional, especialmente no período do Pós-Guerra no curso das relações econômicas interestatais. Por isso é que a adoção de regras da nova ‘lex mercatoria’ aparece, em sua pretensão de validade doutrinária e jurisprudencial, como uma tentativa de superação dos principais problemas que apresentava a aplicação das regras de conexão clássicas do direito internacional privado para os contratos celebrados entre os principais atores do comércio internacional.23

Pois bem. Tanto o art. 11 da Convenção de Viena de 198024 quanto o art. 1.2 dos Princípios Unidroit25 consagram o princípio da liberdade formal do contrato de compra e venda, que não requer instrumento escrito nem se sujeita e requisitos específicos de forma, podendo a sua existência ser comprovada por quaisquer meios, inclusive a prova testemunhal. Portanto, está caracterizada no caso concreto a relação negocial de compra e venda entre as partes, ao abrigo da Convenção de Viena de 1980 e dos Princípios Unidroit, já que, como dito anteriormente, as faturas das fls. 22/23 dão conta de demonstrar a avença entre a autora e a ré, relativa à aquisição e entrega das quantidades ali especificadas de pés de galinha congelados, mediante o pagamento do valor total de US$117.450,00 (cento e dezessete mil, quatrocentos e cinquenta dólares norte-americanos). Por outro lado, ainda no que se refere aos termos em que foi pactuado o contrato em tela, a prova dos autos igualmente demonstra que, relativamente ao pagamento, as partes estipularam a efetuação de transferência inicial de US$1.000,00 (mil dólares norte-americanos), seguida pela transferência de outros US$78.650,00 (setenta e oito mil, seiscentos e cinquenta dólares), sendo que o valor restante seria pago posteriormente – assim se depreende das trocas de e-mails acostas nas fls. 25/28.
Além de ter comprovado a existência do contrato firmado com a ré, a autora igualmente demonstrou a realização dos pagamentos acima referidos, na data e modo estipulados. O documento das fls. 30/31 atesta a
24 Convenção de Viena de 1980, art. 11. “O contrato de compra e venda não requer instrumento escrito nem está sujeito a qualquer requisito de forma. Poderá ele ser provado por qualquer meio, inclusive por testemunhas.”
25 Princípios Unidroit 2010, art. 1.2. “Nenhuma disposição contida nos presentes Princípios exige que um contrato, uma declaração ou qualquer outro ato seja concluído ou mesmo provado mediante forma especial. Ele poderá, ao contrário, ser provado por qualquer meio, inclusive por testemunhas.”

transferência internacional de valores em questão, certificando, pois, que a demandante / compradora atentou para o disposto na norma do art. 53 da Convenção de Viena de 198026, a qual consagra as obrigações por excelência do comprador, quais sejam o pagamento do valor acordado, em um primeiro momento, e, posteriormente, o aceite da mercadoria. Acerca da norma em tela da Convenção, manifesta-se a doutrina no seguinte sentido:
O art. 53 estabelece as duas obrigações características do compradora: pagar o preço de compra e aceitar as mercadorias. Sua contraprestação decorrente do Capítulo II, relativamente às obrigações do vendedor, é o art. 30, nos termos do qual o vendedor deve entregar as mercadorias, entregar qualquer documentação a elas relacionada e transferir a sua propriedade. Juntos, esses artigos estabelecem as obrigações principais e essenciais decorrentes de um contrato regulado pela Convenção de Viena.27
A ré, entretanto, não logrou êxito em demonstrar ter satisfeito a obrigação de entrega da mercadoria e de transferência da respectiva propriedade, que se extrai do art. 30 da Convenção de Viena de 198028. Em contestação, reconheceu ter recebido o pagamento de US$79.650,00 (setenta e nove mil, seiscentos e cinquenta dólares), ao mesmo tempo em que informou ter efetuado a entrega, no porto de Hong Kong (fls. 55/62), o que, contudo, não veio respaldado por qualquer indício de prova, nos autos.

Afinal de contas, a documentação das fls. 78/85 diz respeito ao envio de mercadorias para pessoa jurídica distinta da autora. Portanto, o exame do conjunto probatório trazido ao feito permite concluir que, com base no ônus que lhe impunha a norma do art. 373, II, do Novo CPC, a ré / devedora não levou a efeito a entrega da mercadoria, a qual – repita-se – constitui por excelência a obrigação principal e essencial do vendedor, na praxe do comércio internacional, como evidencia a norma do art. 30 da Convenção.
Além disso, convém frisar que muito embora o regime da Convenção de Viena de 1980 admita o direito de retenção da mercadoria, pelo vendedor, até que tenha recebido o pagamento integral, tal hipótese somente tem lugar se o pagamento integral tenha sido previamente acordado entre as partes29. Ora, não são essas as circunstâncias do caso em apreço, no qual, como antes referido, as partes ajustaram os pagamentos prévios de US$1.000,00 e de US$78.650,00, a partir do quais, nos termos da avença, deveria a requerida / vendedora ter efetuado a entrega da carga, no porto estipulado (Hong Kong, China).
Portanto, dada a ausência de prova do cumprimento da obrigação em tela, está caracterizado o direito da compradora requerente à rescisão do contrato, com base no art. 49(1)(b) da Convenção de Viena de 198030. Afinal, uma vez em mora quanto à entrega, a empresa vendedora gozou de prazo suplementar durante o qual poderia ter finalmente tê-la efetuado. Ou, em outros termos, as reiteradas (e inexitosas) tentativas de contato com a ré, levadas a efeito pela autora, com vistas a obter esclarecimentos quanto à entrega e finalmente lograr êxito na sua efetivação, na prática findaram por constituir prazo suplementar concedido em favor da requerida / vendedora, exatamente como faculta ao comprador a norma do art. 47(1) da Convenção31, já que a autora / compradora somente procedeu à propositura do presente litígio em face do transcurso de considerável interregno (oito meses) durante o qual o preposto da ré nem ao menos diligenciou no sentido de responder aos e-mails enviados pela ora requerente (fls. 33/49).
Aliás, cabe aqui pontuar que, em função disso, o que se tem é que, no caso concreto, a declaração judicial de rescisão do contrato não se dissocia do reconhecimento de flagrante ofensa, pela vendedora / demandada, do dever das partes contratantes de proceder segundo os ditames de boa-fé, o cânone maior das relações comerciais internacionais regidas pela “nova lex mercatoria”, como se infere da leitura do art. 1.7 dos Princípios Unidroit32 e do art. 7(1) da Convenção de Viena de 198033 – esse último, aliás, constituindo um comando explícito aos Juízes (estatais ou arbitrais) que a aplicam34. Com efeito, no intuito de criar uma uniformidade de regras para o tratamento destinado às relações comerciais internacionais, a Convenção de Viena de 1980 estruturou a noção de contrato a partir de dois pilares fundamentais, a saber, a autonomia privada e a boa-fé objetiva35, da qual se pode extrair, entre outros, o dever das partes de atuar com lealdade negocial, a impor aos contratantes a compreensão de que o contrato de compra e venda internacional de mercadorias há de ser entendido como uma relação de cooperação entre os que dela participam36. No caso concreto, como visto, houve frontal violação ao pilar da boa-fé, a ensejar a resolução do contrato, de conformidade com as demais normas a esse respeito ditadas pela Convenção.
Logo, declarando-se a rescisão do contrato, com base na aplicação conjunta das normas previstas no art. 47(1) e no art. 49(1)(b) da Convenção de Viena de 1980, o que se coloca como desdobramento lógico é o dever de a vendedora / ré proceder à restituição do valor pago pela autora, porque assim determina o art. 81(2) do mesmo tratado. Assim sendo, não merece reparos a sentença de procedência do pedido de declaração de rescisão da avença e de restituição do valor apontado na exordial, sendo devido o desprovimento do apelo, o que inclusive remete à antes mencionada desnecessidade de prestação da “cautio judicatum solvi”, analisada no item 1.2 deste voto.
Tendo em vista que a sentença recorrida foi prolatada já sob a vigência do Novo Código de Processo Civil, cabe a aplicação da regra do seu art. 85, §11, razão pela qual majoro os honorários de sucumbência devidos aos patronos da autora para 15% sobre o valor atualizado da condenação, com amparo no rol do §2o do mesmo dispositivo legal.
Por fim, no que diz respeito ao pedido contrarrecursal de condenação da ré ao pagamento de multa por litigância de má-fé, não verifico a incursão da ré em qualquer uma das condutas vedadas pelo rol dos arts. 77 e 80 do Novo Código de Processo Civil.
3 Dispositivo
ISSO POSTO, voto no sentido de: (i.) rejeitar as preliminares recursais de ilegitimidade passiva e de ausência de pressuposto de constituição e desenvolvimento válido e regular do processo; (ii.) indeferir o pedido sucessivo de conversão do feito em diligências, declarando a desnecessidade de prestação de caução processual, pela autora / apelada; (iii.) negar provimento à apelação cível, para, assim, manter a sentença de procedência dos pedidos contidos na exordial; (iv.) indeferir o pedido de aplicação de penalidade por litigância de má-fé; e (v.) majorar os honorários sucumbenciais para 15% sobre o valor atualizado da condenação, na forma do art. 85, §11, do Novo CPC.

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Source

Original in Brazilian:
- available at the University of Carlos III website, www.cisgspanish.com

Commented on by:
- A. C. Beneti, First CISG decision in Brazil: Brazilian Courts take the first steps towards application of the CISG, in Internationales Handelsrecht (IHR), n.1/2018, 88 ff.}}